Letitia Wright e o medo histórico da comunidade negra em se vacinar

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Na manhã de sexta-feira, os portais de notícias do mundo todo divulgaram uma história que gerou uma revolta gigantesca, principalmente na população brasileira e no meio geek em geral: a atriz Letitia Wright, conhecida por interpretar Shuri no filme da Marvel Studios, ‘Pantera Negra’, supostamente prefere perder o seu papel no Universo Marvel do que tomar a vacina contra a COVID-19.

Apesar de ser apenas um rumor (de uma fonte não muito confiável, deixando isso bem claro), muitos tomaram como verdade absoluta, já que, meses atrás, a atriz já havia compartilhado um vídeo antivacina, de um autointitulado profeta chamado Tomi Arayomi, que fazia várias afirmações não-científicas, a mais curiosa sendo sobre o uso da enzima luciferase, dizendo que o nome faz referência a Lúcifer e que tomar a vacina seria, tecnicamente, um pecado.

Na época, a atriz foi altamente criticada, principalmente por seus colegas atores, um desses sendo Don Cheadle, o intérprete de James Rhodes, o Máquina de Combate, que criticou a postura da atriz e revelou que pretendia ter “uma conversa séria” com ela. Letitia respondeu as críticas, afirmando que não se pode ter uma “opinião contrária” à maioria das pessoas, porque senão seria cancelado. Isso enfureceu ainda mais os internautas, dizendo que a atriz não correspondia a personagem que interpretava (já que Shuri é extremamente inteligente), e após ser bombardeada com mais críticas, a atriz optou por desativar as suas redes sociais.

Enquanto a atriz britânica, aparentemente, se recusa a tomar a vacina por motivos religiosos, essa polêmica abriu precedentes para mais artistas negros (principalmente norte-americanos) serem criticados por não quererem tomar a vacina, como Nicki Minaj, que disse que não queria tomar por causa de um amigo, que teve sérios efeitos colaterais e que ficou com medo de se vacinar, ou o rapper Ice Cube, que preferiu perder o papel em um filme do que cumprir a exigência do estúdio de que todos os empregados deviam estar vacinados no set de filmagens.

E o que, para nós brasileiros, é um completo absurdo – já que desde bem antes da pandemia, campanhas anuais de vacinação já eram frequentes por aqui -, o mesmo não pode ser dito lá no exterior, principalmente nos Estados Unidos. Se pesquisarmos em portais gringos notícias sobre essas celebridades questionando a eficácia da vacinação, iremos encontrar centenas de comentários apoiando o posicionamento dessas celebridades, a maior parte deles, sendo de internautas afro-americanos.

É muito fácil dizer que essas pessoas são “contra a ciência” ou “gado” (palavra favorita do brasileiro quando é para se referir a alguém que contesta a vacina), se fosse no Brasil, até poderia ser verdade, mas olhando por uma ótica histórica e sociológica, o motivo para tanta resistência a imunização contra a COVID-19, pode ser a insegurança de uma população claramente marginalizada pelo Estado.

Longe de ser causada por um movimento antivacina – ou negacionista da ciência – a situação expõe as inseguranças daqueles que sempre se viram às margens dos olhos do Estado. O assunto foi abordado pela psicóloga brasileira Mara Gomes, que vive atualmente em Atlanta, capital da Geórgia. Em um vídeo divulgado no Tiktok, ela cita como a negação e a desconfiança da cantora Nicki Minaj com o imunizante gerou um espanto nos brasileiros. A visão de Minaj, no entanto, não é incomum entre os norte-americanos. Mara Gomes explica que outros cidadãos também têm resistências à vacina por um desconfiança no Estado, motivada por testes realizados no passado.

“Na cidade de Tuskegee, cerca de 400 homens negros foram chamados para participar de um estudo contra a sífilis. O sistema de Saúde e o governo dos Estados Unidos apoiaram esse experimento, que tinha a proposta de observar os efeitos da sífilis se ela não fosse tratada. Mas esses homens não eram informados disso, muito pelo contrário”, afirma Mara Gomes na gravação. O estudo de Tuskegee, citado pela psicóloga como uma das razões para a desconfiança da população negra com a vacinação, aconteceu entre 1932 e 1972 na cidade que nomeia o experimento, localizada no Alabama. Na prática, o projeto de pesquisa pretendia avaliar a evolução da doença, livre de tratamento, não sendo uma cura para a sífilis, mas sim um estudo de observação. Segundo artigo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), os participantes não eram sequer informados dos efeitos – a longo prazo – da patologia. Para os analisados, o diagnóstico divulgado era de “sangue ruim” e a contrapartida da participação era um suposto tratamento médico, uma refeição no dia dos exames e o pagamento das despesas com o funeral, em caso de óbito.

Ao fim do estudo, 100 homens negros morreram por complicações relacionadas à sífilis, 25 diretamente pela doença e 40 esposas das “cobaias humanas” foram infectadas, gerando 19 crianças nascidas com sífilis congênita. “A inadequação inicial do estudo não foi a de não tratar, pois não havia uma terapêutica comprovada para sífilis naquela época. A inadequação foi omitir o diagnóstico conhecido e o prognóstico esperado”, diz o professor José Roberto Goldim no artigo da UFRGS. No documento, ele menciona que, mesmo com as descobertas terapêuticas contra a doença na década de 50, os participantes continuaram sem acesso a qualquer tipo de tratamento. “Por isso, a gente não pode simplesmente julgar as pessoas que não acreditam na vacina da Covid-19, isso vai muito além da ciência, vai de uma desconfiança do governo e das práticas dele. Elas tomariam a vacina do Brasil, mas não tomariam a daqui”, afirma Mara Gomes.

Outras motivações

Embora seja um dos maiores motivos de desconfiança da comunidade negra com o Estado, o estudo de Tuskegee não é a única razão que explica as resistências à vacina contra a Covid-19. O cientista social Jeulliano Pedroso, em entrevista a Jovem Pan, cita outros pontos que também contribuem para a baixa adesão às campanhas de imunização, como a falta de uma tradição vacinal, o período curto para desenvolvimento dos fármacos e as diferenças nos discursos governamentais. “Existe uma desconfiança estrutural com relação ao governo, porque esses experimentos, naquele momento, contavam com apoio governamental. Então, não tem um histórico de confiança e de uma relação saudável [Estado x população], pelo contrário. É natural que a população negra seja resistente. Não é anticientífico, é um caráter histórico e cultural que acaba justificando isso.”

Pedroso comenta que, diferente do Brasil, onde há uma tradição das campanhas de vacinação gratuitas e do Sistema Único de Saúde (SUS), nos Estados Unidos, a imunização antes da Covid-19 não era acessível para todos. Com isso, a oferta repentina das vacinas causa estranheza. “As pessoas não estavam acostumadas, elas começaram a receber a vacina e isso é visto como um movimento estranho do governo, por ser uma novidade. Nunca te deram nada, agora tão te dando? Por quê? Quando a esmola é demais, o santo desconfia, né? A visão é que da última vez que deram algo ‘de graça’ era, na verdade, um experimento”, acrescenta o cientista social. O mesmo entendimento também é defendido por Mara Gomes. “A resistência é contra o governo. Eles acreditam que o governo não é justo, que pode acabar implantando coisas dentro deles, que podem acabar dando uma vacina que vai fazer com que eles se sintam doentes depois, ou tenham efeitos colaterais no futuro”, afirmou na entrevista.

O que a história diz?

Tanto a psicóloga Mara Gomes quanto o cientista social Jeulliano Pedroso citam que o principal motivo para a resistência à vacinação está nas atrocidades cometidas contra a população negra. Mas o que diz a história sobre a relação de confiança e desconfiança com o governo? O historiador Odeir Neto destaca que, desde o fim da escravidão, a vivência da população negra foi marcada por momentos de segregação, discriminação, racismo e pela retirada de direitos do povo negro. No entanto, mesmo com a 13ª emenda, assinada em 1º de fevereiro de 1865 pelo então presidente Abraham Lincoln e que colocou fim à escravidão no país, não houve o acolhimento da comunidade negra. “Não teve uma efetiva política de reparação à comunidade negra para a inserção enquanto cidadãos na sociedade. Em 1877, começaram as legislações Jim Crow, que ficaram em vigor até 1964 e que cercearam os direitos dos negros. Com isso, o Estado não era visto pela população negra como um aliado, um defensor dos seus direitos”, comenta Neto. 

Essa situação descrita pelo historiador só começou a mudar em 1964, com o movimento protagonizado por Martin Luther King, que levou à aprovação da Lei dos Direitos Civis, que proíbe a discriminação por raça. No entanto, novas formas de repressão e discriminação contra o povo negro surgiram, o que intensifica o sentimento de desconfiança nos cidadãos com a atual preocupação do governo na pandemia. “Os representantes do Estado na comunidade continuam, por muitas vezes, a oprimir a população negra, inclusive com violência e abuso de poder, como vimos em 2020 com a morte de George Floyd. A polícia nada mais é do que a representação do Estado, um aparelho político para manter a segurança, mas que pode ser usado como repressão”, comenta Odeir Neto.

“Então, a comunidade negra criou uma desconfiança com as políticas de governo por não se ver contemplada. O Estado sempre me reprimiu, sempre me considerou um não-cidadão, negou meus direitos e agora está preocupado comigo? Isso desperta desconfiança”, completa. Assim como Mara Gomes e Jeulliano Pedroso, o historiador reforça que a resistência à vacina contra a Covid-19 não é causada por uma negação à ciência, a desconfiança se dá ao governo e às políticas públicas apresentadas que, em outro momento, levaram à morte do povo negro. “A esmola foi grande, eles confiaram e, infelizmente, foram abusados. Então, existe um exemplo factual que justifica essa desconfiança do povo negro norte-americano. Não devemos julgá-los, mas entendê-los.”

Fonte: Jovem Pan

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