
Quentin Tarantino não fez apenas um filme de vingança. Ele costurou, com fios de seda e lâminas de aço, um épico pessoal onde cada golpe de espada é uma sílaba num poema de dor. Kill Bill é a jornada de Beatrix Kiddo, “A Noiva”, despertando de um coma para um mundo que tentou apagá-la. Sua missão é simples: riscar nomes de uma lista. Mas cada nome é um capítulo de um passado traído, e cada confronto é uma aula de estilo, ritmo e memória cinematográfica.
A genialidade da obra está em sua linguagem híbrida. Tarantino pilha referências, filmes de samurai de Kurosawa aos westerns spaghettis de Leone, dos kung-fu movies de Shaw Brothers ao animes – não como um colecionador, mas como um alquimista. Ele funde tudo em um caldeirão e derrama na tela um estilo único. A sequência em preto e branco do massacre da capela, a animação que conta a origem de O-Ren Ishii, o duelo silencioso e nevado no jardim japonês: cada ato é um gênero diferente, mas a voz do diretor é inconfundível.
No centro desse turbilhão, Beatrix Kiddo (Uma Thurman) é mais que uma protagonista; é uma força da natureza. Seu traje amarelo se tornou icônico, mas é a dor contida em seus olhos – e a fúria animal que dela escapa – que dá peso a cada golpe. Sua jornada não é para se tornar um monstro, mas para recuperar sua humanidade roubada, simbolizada na busca final por sua filha, B.B. A cena do teste de gravidez positivo no banheiro do trailer é um dos momentos mais humanos e cruéis do cinema.

Os antagonistas, os membros do Esquadrão Assassino Vipers, não são apenas obstáculos. Cada um reflete um fragmento do que Beatrix poderia ter sido. Vernita Green (Vivica A. Fox) é a vida doméstica que ela perdeu. O-Ren Ishii (Lucy Liu) é a rainha impiedosa que ela poderia ter se tornado. Budd (Michael Madsen) é o desencanto amargo, e Elle Driver (Daryl Hannah) é seu espelho perverso e cínico. Bill (David Carradine), por fim, é o amor corrompido, o pai da sua criança e o arquiteto do seu inferno. Sua conversa final, carregada de amor e veneno, eleva a vingança a uma tragédia íntima.
A trilha sonora é uma faca afiada. Os riffs de guitarra enérgicos, os temas spaghetti western de Ennio Morricone e o silêncio repentino antes do estouro de violência são tão importantes quanto os diálogos. A coreografia de luta de Yuen Woo-ping transforma o combate em dança. O confronto no Club Fooey da Harajuku Gang, a batalha contra os 88 Loucos na Casa das Folhas Azuis – são balés de precisão brutal onde cada movimento conta uma história.
O clímax, a conversa na casa de Bill no México, é a antítese do que se espera de um final de ação. É íntimo, filosófico e devastador. A vingança se consuma não com um golpe espetacular, mas com um golpe único e pessoal, o “movimento das cinco pontas”. A cena final, com Beatrix chorando no chão do banheiro, não é de triunfo, mas de exaustão e um começo frágil. Ela matou Bill, mas agora precisa aprender a viver com a mulher que se tornou para isso.
Nota: (5/5). Em resumo, Kill Bill é uma obra-prima de culto e catarse. Mais do que um tributo aos gêneros que ama, é uma declaração de amor ao poder mitológico do cinema. Tarantino nos mostra que a vingança pode ser o pano de fundo, mas a história real é sobre identidade, perda e a busca tortuosa por paz. Uma saga que corta direto para a alma.